Merci Bocu...
Apesar do fascínio pelo romantismo da língua francesa, preferi dedicar os cinco meses de estudos ao inglês. Além do show em Paris, passaríamos por Londres, Barcelona e Tânger, no Marrocos. O meu contato mais próximo com o francês deu-se por escutas sazonais de algumas palavras tomadas pelo nordestinês: das quadrilhas juninas - anavantu e anarriê; das piadas pueris - merci bocu e nê pá dê quá; da matutagem - o famoso "zé finim". Afora estes vocábulos, eu só seria entendido em franciú se soltasse um sorriso, um afago, um aceno, um peido e outras mungangas mais, filhas da universalidade humana.
Eu e Cissa assumimos com nossa caçula o compromisso de fotografar o museu de Édith Piaf, famosa cantora da Cidade Luz. Nem o Museu do Louvre passaria à frente. A Torre Eiffel não tem como: de tão enxerida, vê-se até dormindo.
Chegando à Rua Crespin du Gast, 5, Paris, fui surpreendido com um prédio sem traços de museu, um tanto negligenciado. Senti-me no Brasil, ao ver a memória sendo movida a esquecimento. Chamamos, batemos, gritamos e... nada,ninguém apareceu. Algum tempo depois, aproveitando a porta aberta por um homem que saíra em silêncio, entramos no prédio. Demos de cara com uma segunda porta. "Agora lascou... Ô muié difícil !" A mesma ladainha: chamamos, batemos, gritamos e nada. Subitamente, o sorriso de uma senhora escancarou a porta, freando nossa desistência:
- Bonjour monsieur! - Acunhou a voz senil.
- Do you speak english? - Arrisquei meu inglês de mamãe-quero-morrer.
Nada. Zero boi. Diante da porta aberta a comunicação estava fechada.
- Oxente, minha senhora?... - Cissa atalhou em desespero.
Ela não entendeu o "oxente", mas devolveu um "vocês falam português?" ao compreender o "minha senhora". O milagre do diálogo foi estabelecido. A senhora, uma portuguesa de Lisboa, havia chegado na França ainda menina. O português estava em frangalhos, mas como diz o ditado: "é melhor fanho que sem nariz".
Descobrimos, por ela, que o museu tratava-se do apartamento onde nossa ave canora havia morado. E mais: era privado. Um amigo da artista tomava conta do espaço. Falava somente em francês e cobrava cinco euros por pessoa. Não permitia fotos. Pior: só atendia quem tivesse horário marcado por telefone. "Agora lascou... Dois, três e quatro!"
Vencida por nossa insistência, a senhora quebrou todos os protocolos e interfonou para o guardião de Piaf: convenceu-o a nos atender, acertou valores e regras, reforçou que éramos cegos, surdos e mudos... no francês. Fechado!
Na porta do apartamento, com 30 euros na mão, o senhor foi recíproco ao nosso sorriso. Em duas pequenas salas fomos apresentados ao célebre acervo de Édith. Nada de tocar ou fotografar. Que pena! Temendo desapontar nossa filha, resolvemos quebrar o código de conduta do ambiente: as mulheres tirariam as fotos e os homens enrolariam o atento cuidador, em corpês: sorriso, tapinha nas costas, balanço de cabeças e ombros, movimentos aleatórios de mãos e pés... Clique, clique, clique! Preocupado com o iminente esgotamento de nosso vocabulário corporal, João inventou de perguntar, em mímica, quando Édith Piaf havia morrido: primeiro colocou as mãos em posição de dormir e encostou-as no rosto. Não obteve resposta. Depois, imitando um soldado em posição de sentido, arregalou os olhos e os fechou, de súbito. Nada. Colocou as mãos no peito, simulando um ataque cardíaco. Neca. No ápice de sua aflição, apontou para a foto da cantora, fechou a mão esquerda em formato de copo e com a direita espalmada deu três tapinhas...
Ainda bem que na França "tomar naquele lugar", na linguagem das mãos, tem outro desenho.
Quebrei a regra do "proibido usar smartphone" nas ventas de nosso anfitrião. Via Google Tradutor, respondi a pergunta de João: "1963".
Temi que ele perguntasse a causa da morte. Não perguntou. Ufa!
"Pernas, pra que te quero?"
"Vou ser o primeiro homem da galáxia a postar uma foto do acervo secreto de Édith Piaf na rede", pensei. Oxe! Aí dento, meu mano! Um zilhão de pedidos de segredo foram quebrados...
Zé Finim...
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