A Mala...

As ondas da Rádio Educadora rasgaram os ares da Chapada do Araripe; passando por Bodocó, foram captadas pelas antenas de um atento aparelho Motoradio, à pilha, que alguém nos emprestara. Os tímpanos apreensivos lá de casa, abarrotavam a latada de vara de marmeleiro sobre a qual descansava um pé de maracujá:

-- Francisco Flávio Leandro Furtado! bradou a voz histórica de Elói Teles. Euforia geral. Dali a sessenta dias, eu seria o mais novo interno do Colégio Agrícola do Crato.

Alguns minutos depois da notícia alvissareira, mamãe começou a arrumar meus panos de bunda...

A princípio uma mochila jeans, seria meu guarda-roupas. Não coube! Uma pequena mala de couro sintético foi acionada. Não deu! Uma caixa de óleo "Du Reino" foi chamada às pressas; neca de pitibiribas!

-- Um homem prevenido vale por dois, meu filho!
Foi a negativa de mamãe ao meu pedido por uma bagagem módica.

No coração dela caberia tudo; preferiu ocupar a mala de Tia Vanda: uma lapa de recipiente com traços de moradia.

Ali, todas as burundangas da face da terra foram acomodadas, de A a Z, passando, sem necessidade, por cá, ípsilon e dáblio.

De tão alta, a ladeira do colégio agrícola imitava a subida do Horto; faltava somente um Padre Cícero para o meu socorro. Os cento e tantos novatos subiam, um a um, com suas pequenas mochilas nas costas; eu, somente eu, arrastava, sôfrego, o baú de um caminhão de mudanças; sem rodas! O cê de chacota foi pintado bem no centro de minha testa:

- Olha a mala das cobras! - Dizia um.
- Quero remédio pra chanha! - Berrava outro.

A cada doença listada, um turbilhão de gargalhadas. Meus quinze anos não riram...

Guardei um ror de coisas no armário. Escondi a mala debaixo do beliche e tranquei a felicidade dentro; cultivei a saudade, que acabara de se plantar em mim.

Terminados os quinze dias de estágio, todos os novatos regressaram aos seus lares, menos eu. Com receio, deixei a viagem para a noite do outro dia.

Descer com aquela estrovenga não foi difícil... Chegando ao portão da escola, esperei uma piada do vigilante Pereira; não veio. Agradeci aos céus. Mesmo assim, resolvi esconder a mala numa moita que crescera por ali.

Vinte pra meia noite, uma rênquea de veteranos pousou nos arredores de minha saudade. Vinham do bar de Zé Vicente; sentaram a poucos metros da vontade de ver meu povo. "Eles saem já..." Gritei em silêncio! Não saíram. A mala estava escondida na moita. Nem viu o sofrimento do motor carregando um ônibus na subida da ladeira; nem meu sofrer, ao ler em cada letra da palavra PERNAMBUCANA um maiúsculo "até amanhã, mané!"

Arrastei da moita a mulesta da mala... dei uns cinco chutes, tipo bicudo, bem no meio da titela da aloprada...Berrei: "mala filha da puta!!!"

Viajei na noite seguinte, com o pé direito machucado...

- Sua mala, rapaz!

- Nã... Minha mesmo, não, oxe!...

#somosforró

Revisão: Manu Leandro

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